quarta-feira, 15 de julho de 2020

Rasga-Mortalha (Conto)



Meu nome é Luciano, mas sou conhecido pelo meu sobrenome, Bastos, trabalho num carrossel dum parque de diversões no largo do papagaio.

Como não tenho relógio acendo um cigarro e quando ele se apaga, tiro os meninos - e as meninas - do brinquedo, às vezes eles pedem um chorinho, pra dar mais uma volta, eu deixo, quando peço um chorinho na cachaça do Bar de Bené ele nunca reclama e coloca um pouquinho a mais...então porque vou ser miserável e deixar os pobrezinhos sem uma voltinha, o prazer da vida é o bônus que às vezes nos concedem...mas são poucas...às vezes.
Todo fim de tarde é assim, os parentes trazem a criançada pra dar uma volta, compram o ingresso, me pagam, pego a menina de vestido de renda, levento e coloco-a num pônei, pego um menino e coloco num carro, às vezes umas crianças querem trocar, um menino quer andar num bicho diferente e o pai reclama, a mãe num deixa, eu falo "besteira, é criança, deixa ela brincar", mas ficam dizendo que não pode, a criança chora, é um inferno, eu carrego e falo pro pai que vou por no helicóptero pra criança voar e cochicho no ouvidinho infante "liga não, helicóptero é legal e vou te dar duas voltas extras tá certo?"...tudo se resolve, quem num quer 2 voltas extras? É o tal do bônus, ele serve pra deixar a vida menos tediosa.
Hoje eu fiz 30 anos, meu time perdeu o campeonato nos acréscimos pro nosso maior rival, ao apagar das luzes, 47 do segundo tempo, eles sagraram-se campeões, que belo presente, quase enfartei ouvindo no radinho, ainda bem que tinha tomado umas cachaças e a derrota bateu um pouco macia, se é que depois de uma dessas qualquer coisa desce macia...fui pra casa, na verdade pro quartinho dos fundos que eu alugo, fiquei lá...deitado...pensando em você...meu quarto está vazio...eu fumo um cigarro...vejo seu rosto na fumaça e em todos lugares...estou só e você se foi...acendo outro cigarro...e a bituca se vai pela janela...mas você continua no quarto enquanto a fumaça se esvai e você não...

Bom, eu sou o relojoeiro, levo meu netinho todos os dias pra brincar no carrossel em que Luciano trabalha, você não deve estar entendendo nada, afinal no parágrafo acima ele estava falando de si mesmo na primeira pessoa e agora sou eu...enfim...entrei na história assim mesmo e vou falar de minha perspectiva...apareci e pronto...como dizia nas linhas anteriores, eu sempre levo meu neto para brincar e percebi que o Sr Bastos não possuía um relógio, toda pessoa que se preze precisa entender que ela tem que enxergar o tempo passar, um belo dia ele me disse que o seu aniversário estava próximo, perguntei a data e fui informado...então no dia em que ficava mais velho dei de presente pra ele um relógio de bolso, com correntinha banhada a ouro...ele ficou perplexo e disse que não precisava, falei-lhe "meu filho, aceite, é de bom grado, trabalho com isso, o que não me falta são relógios...esse é seu...não veja o tempo esvair pela fumaça do seu cigarro, aliás, contamina a criançada toda, mais do que a chaminé da fábrica Chadler, fora que aqui perto tem a fábrica da Souza Cruz, é fumaça tóxica pra uma geração inteira, daqui a pouco essa gurizada fica doida, vira um monte de roqueiro punk, metaleiro e outras cousas...e você evita um câncer de pulmão.", ele agradeceu-me e ficamos amigos com o tempo...Bastos contou-me da derrota de seu time, no dia do seu aniversário, que perdera o campeonato, curiosamente, meu netinho ganhou de presente um cágado (na verdade era um jabuti, mas todo mundo só chama de cágado) e por curiosidade colocou no bichinho o nome do carrasco do time dele, pois o meu netinho tida ido com o pai pra Fonte Nova e vibrou bastante...agora veja só, colocar o nome de um atleta num cágado, essa é boa...muita gente nesse dia enfartou e eu disse pra Bastos que eu nem sofria mais disso, pois meu time, o Ypiranga, não me matava mais do coração há décadas...meu coração já estava seco...desesperançoso futebolísticamente falando...que ver o auri-negro jogar já era uma emoção em si...só ver o uniforme em campo, era um triunfo...um título...o tempo eu sei muito bom como funciona...pensam que nós relojoeiros, trabalhamos com o tempo...mas trabalhamos com as engrenagens...senão o tempo para...é preciso colocá-las pra funcionar pra que o tempo rode...continue...não pare...estacione...engesse...é preciso de um óleo aqui...uma coisa acolá...assim se passam as horas...e um jabuti vive mais do que todos nós...eu, Luciano, meu netinho, Raudnei, o título de 1994 e qualquer um outro de qualquer outra década...horas...


Vivi mais que o meu dono, o avô, o pai dele, meu xará e qualquer outra pessoa que você conheça, até mesmo de quem ler essas linhas e daqui a pouco não estará mais aqui, estamos todos mortos, é só uma questão de tempo, nem mesmo eu resistirei...nem minha carcaça...

O filho do meu dono me trouxe pra um sítio e me largou no quintal, minha preocupação maior é que uma coruja não venha me comer enquanto estou livre.  

Rodrigo Chagas

25/04/19

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